Como a dor crônica pode impactar a saúde mental?
Se você não tem, provavelmente conhece alguém que sofre de dor crônica. Existe uma série de doenças que provocam dor crônica: na cabeça, nas costas, nos membros inferiores e superiores. Seja onde for, elas podem gerar um grande impacto na qualidade de vida a depender da intensidade e da frequência com que aparecem.
De acordo com o Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos (ELSI-Brasil), financiado pelo Ministério da Saúde, cerca de 37% da população brasileira com mais de 50 anos sofre de dores crônicas. O levantamento indicou também que a dor crônica é mais frequente entre mulheres, pessoas de baixa renda e pessoas com diagnóstico de artrite, dor nas costas, sintomas depressivos e histórico de quedas e hospitalizações.
“A dor crônica é uma das principais causas de procura por atendimento médico e sempre resulta de uma combinação de fatores: biológicos, psicológicos e sociais. Estes fatores são indissociáveis e devem ser levados em conta no tratamento”, afirma Bruna Bartorelli, médica psiquiatra coordenadora do Programa de Transtornos Somatoformes do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (IPq/HCFMUSP).
Segundo Alexandre Annes Henriques, psiquiatra do Serviço de Tratamento da Dor e Medicina Paliativa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e coordenador do Programa de Psiquiatria e Dor (PRODOR) do mesmo hospital, situações de dor crônica e saúde mental são bidirecionais, ou seja, a dor crônica repercute negativamente na saúde mental, e vice-versa. “Alterações de saúde mental, como transtornos psiquiátricos, também repercutem negativamente na situação de dor crônica. Então, quem tem dor crônica tem mais chance de ter uma situação psiquiátrica e quem tem uma situação psiquiátrica tem mais chance de desenvolver dor crônica”, explica.
O que é dor crônica?
De acordo com Guilherme Olival, neurologista da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, a dor é uma experiência sensorial de sofrimento associada a uma lesão ou potencial lesão em alguma área do organismo. A dor é considerada crônica quando dura mais de 15 dias por mês por mais de três meses.
“A dor crônica é um dos grandes problemas para saúde, porque ou ela está indicando uma grande lesão daquele organismo, uma perda de um funcionamento específico, ou ela é uma alteração primária, quando origem da dor é ela mesma e isso leva a uma a perda de qualidade de vida muito grande do paciente”, esclarece.
O médico cita alguns tipos de dores crônicas mais comuns: dor nas costas (que pode ser na lombar, no ciático ou na cervical, por exemplo), dor de cabeça (sendo a enxaqueca o tipo mais frequente), fibromialgia (que causa dor generalizada) e dores associadas à doenças reumatológicas (como artrose e artrite reumatóide).
O problema da dor subestimada
Infelizmente, ainda é comum que algumas doenças ou dores sejam subestimadas – às vezes por pessoas próximas, amigos, familiares ou colegas de trabalho, e em alguns casos até por profissionais de saúde. Um exemplo é a endometriose: o diagnóstico da doença pode levar até 10 anos para acontecer, e um dos dificultadores é justamente a descrença de médicos que menosprezam as queixas apresentadas pelas pacientes.
“É importante frisar que existem várias causas e tipos de dor e muitas vezes é possível identificar uma causa orgânica clara, como uma hérnia de disco, doença reumatológica ou neuropática, por exemplo. Porém, em outros casos, a causa da dor não é tão clara e são esses casos em que existe muita confusão e preconceito por parte de alguns profissionais de saúde, familiares e às vezes até do próprio paciente. Como é possível tanta dor e perda da funcionalidade sem achar qualquer alteração em exames? Este tipo de dor é mais conhecida como nociplástica e mesmo não se encontrando uma lesão no tecido (dor nociceptiva) ou no nervo (dor neuropática) não quer dizer que o paciente não sinta a dor. A descrença dos médicos gera muita angústia e confusão nos pacientes e familiares, podendo piorar a adesão ao tratamento”, destaca a dra. Bruna.
A microempreendedora Beatriz Oliveira Costa, de 42 anos, conhece bem essa situação. Aos 15 anos, ela passou a sentir dores por todo o corpo. “Comecei a sentir dores da cabeça aos pés, não aguentava os elásticos da calcinha e do sutiã, um aperto de mão, um abraço, um tapinha de leve nas costas me incomodavam. Dormi várias vezes sentada, pois não tinha posições e quando conseguia, rastejava pela casa, por não conseguir ficar de pé”, conta.
Ela foi levada a um neurocirurgião, que pediu uma série de exames que não mostraram nenhuma anormalidade. O médico questionou se Beatriz estava inventando os sintomas e, ao final da consulta, ela ouviu do profissional que “estava com problemas de cabeça”. Beatriz passou por vários outros médicos até ter o diagnóstico de fibromialgia, doença cujo diagnóstico é clínico, já que não leva a alterações em exames. “Sei que ser ignorada por médicos não é um problema só meu, todos nós passamos por isso”, diz.
Impactos na qualidade de vida
“Conviver com uma dor crônica afeta diretamente a qualidade de vida, justamente porque ela gera sofrimento por definição. E o sofrimento é o primeiro elemento de formação do bem-estar. O bem-estar, que é a base da qualidade de vida, é, em primeiro lugar, a ausência de um sofrimento específico”, afirma o dr. Guilherme.
O paciente que tem dor crônica muitas vezes se limita a fazer uma série de atividades: pode ter seu desempenho afetado no trabalho, prejuízos na vida social, perder eventos, não conseguir ter uma vida sexual satisfatória, ter dificuldade para realizar atividades físicas, entre outras questões. “Então, [a dor] impacta cada uma das atividades que o paciente realiza no dia a dia e que vai formando essa qualidade de vida. Isso leva a uma sensação de isolamento, a um desespero que vai se formando e sem dúvida nenhuma afeta profundamente a saúde mental dos pacientes”, completa o neurologista.
Beatriz conta que por conta da doença já ficou meses de cama, tentou cursar uma faculdade e não conseguiu, e teve problemas como síndrome do pânico, depressão e ansiedade. “A dor era tão grande que na época tentei duas vezes suicídio, pois amigos e familiares não acreditavam o que eu estava passando, e até hoje, enfrentando sozinha – aliás, com a ajuda da minha equipe multidisciplinar, sem eles não conseguiria”, relata.
Transtornos psiquiátricos e dor crônica
É comum que pacientes com dor crônica tenham comorbidades, sejam elas físicas ou psiquiátricas. “A maioria tem mais de uma doença. Se a gente for pegar toda a população de dor crônica, mais de 50% deles têm pelo menos um transtorno psiquiátrico. Se entra alguém no consultório do médico com dor crônica, ele tem mais chance de ter um transtorno psiquiátrico em conjunto do que não ter”, afirma o dr. Alexandre.
Isso não significa dizer que obrigatoriamente foi a dor que levou ao transtorno psiquiátrico (que pode ser leve, moderado ou grave). Alguns podem estar mais relacionados à situação de dor e outros, menos. Segundo o especialista, os transtornos psiquiátricos mais comuns no contexto de dor crônica são transtornos de humor (que incluem bipolaridade e depressão), transtornos de ansiedade, uso de substâncias e transtornos de personalidade.
“Tem situações em que a dor crônica vem antes do transtorno psiquiátrico, não quer dizer que a dor crônica gerou o transtorno. Normalmente, a dor crônica foi um desestabilizador e a pessoa com predisposição genética apresentou o transtorno. Então, a gente não diz que a dor crônica é a causa do transtorno psiquiátrico, mas ela é um desestabilizador, é um potencializador para o desenvolvimento dele, até porque os transtornos psiquiátricos podem acontecer por múltiplas fatores, raramente é uma causa única”, explica o psiquiatra.
Quando um paciente com dor crônica apresenta um transtorno mental, o manejo e o tratamento desses pacientes é mais complexo. “E os transtornos psiquiátricos influenciam na experiência de dor. Então, se eu tiver um Alexandre com depressão e um Alexandre sem depressão, e eu der o mesmo choque nessa pessoa, o Alexandre com depressão vai dar notas maiores de dor. Ele vai dizer que está com uma dor nível 7 de 10. O sem depressão talvez fosse dizer 5 de 10, 4 de 10.”
Outra questão é o risco aumentado para dependência química. “Pacientes com dor crônica e depressão têm duas vezes mais chance de fazer uso de medicações opioides por um tempo prolongado, comparado com pacientes com dor crônica sem depressão. E aí tem mais chance de desenvolver dependência”, complementa o dr. Alexandre.
Acompanhamento de saúde mental
O acompanhamento de uma equipe multidisciplinar pode fazer muita diferença no tratamento de pacientes com dor crônica, especialmente se existem prejuízos ou quadros psíquicos associados. No entanto, muitos não veem necessidade de uma avaliação psicológica ou psiquiátrica.
“As pessoas têm uma ideia de que a dor é totalmente de origem física, que a parte emocional não influencia, ou que influencia muito pouco. Ou elas têm medo que se por acaso sejam encaminhadas para um psiquiatra ou psicólogo, vão achar que a equipe está achando que a dor é inventada ou a dor é de origem emocional e que não vão tratar da dor dela”, relata o psiquiatra.
Na verdade, é o contrário: quando o paciente é encaminhado para um profissional de saúde mental, ele terá mais ferramentas para enfrentar sua situação de dor.
“A Associação Internacional de dor, a IASP [International Association for the Study of Pain, em inglês] sustenta que na equipe mínima para tratar um paciente com dor crônica tem que ter no mínimo um profissional de saúde mental – ou um psiquiatra ou um psicólogo – devido à importância em manejar os aspectos psíquicos que o paciente de dor crônica tem. Mas infelizmente, por desconhecimento da equipe, dos médicos, dos pacientes, ou às vezes por menosprezar a importância do profissional de saúde mental, isso infelizmente não acontece em todas as equipes ainda. Na realidade, não acontece na maioria delas”, diz o médico.
A dra. Bruna destaca que o tratamento deve ser interdisciplinar e abordar todos os aspectos do quadro. “Quadros de depressão, ansiedade e abuso de substâncias precisam ser tratados adequadamente através de medicamentos específicos pois impactam na evolução e agravamento da dor. A psicoterapia também tem papel fundamental no tratamento pois permite a abordagem e compreensão dos fenômenos emocionais envolvidos no agravo dos sintomas, assim como no impacto que a dor causa na vida do indivíduo.”
Nem todos os pacientes com dor crônica vão ser atingidos de maneira semelhante. Cada caso é individual e alguns vão ter mais repercussões negativas do que outros. Mesmo pacientes com dor crônica que não tem nenhum transtorno psiquiátrico associado podem precisar e se beneficiar de um acompanhamento de saúde mental, que pode ajudar no enfrentamento da dor.
Estratégias e hábitos importantes
“A gente precisa do tratamento da saúde física e da saúde mental para lidar com a situação de dor. Mas infelizmente raramente alguém vai zerar a dor crônica”, afirma o dr. Alexandre. Por isso, é fundamental manter a adesão ao tratamento – pois uma doença que provoca dor crônica provavelmente vai exigir um tratamento de forma contínua – e também manter alguns comportamentos e hábitos que visam o bem-estar e a saúde mental. O psiquiatra lista os principais pontos nesse contexto:
- Sono adequado: ter um sono de qualidade e com a quantidade de horas necessárias é importante, pois pacientes que não dormem bem têm mais sensibilidade à dor;
- Atividade física: o médico diz que “não há tratamento para dor crônica sem movimentação”. O exercício físico deve estar na rotina de acordo com a possibilidade de cada pessoa. Por exemplo, se o paciente consegue caminhar apenas alguns minutos por causa da dor, ele recomenda fazer três caminhadas de 15 minutos por dia, ao invés de uma única de 45;
- Alimentação saudável: uma alimentação equilibrada ajuda a controlar o peso e manter um bom funcionamento intestinal (já que algumas medicações podem causar efeitos colaterais como prisão de ventre), além de melhorar a saúde como um todo;
- Gerenciamento de estresse: o estresse pode piorar a dor e dificultar o tratamento, portanto, estratégias para reduzi-la devem ser adotadas, como a própria psicoterapia, e também técnicas de relaxamento, como meditação mindfulness e ioga, por exemplo;
- Socialização: manter-se em contato com as pessoas e envolvido em atividades em que se sinta importante ajudam a ocupar o cérebro e evitam o isolamento;
Hoje, Beatriz está há mais de quatro anos sem medicação, e além do acompanhamento médico, tem cuidados com alimentação, pratica atividade física – faz pilates, musculação e fisioterapia –, e mantém o acompanhamento de saúde mental. “Sei que não é fácil, mas sei também que é maravilhoso olhar o caminho percorrido e perceber o quanto eu consegui, no meu ritmo, no meu jeito, um passo de cada vez. Não é só por medicamentos que tratamos, o paciente precisa ter esforço e foco em querer mudar: terapia, mudança alimentar, atividades físicas, fisioterapia, controle do estresse, higiene do sono, entre outras coisas. Existe um preconceito de achar que procurar ajuda psicológica, ou um psiquiatra, ou um psicanalista é coisa de louco. Não é.”
Fonte: Site Drauzio Varella